Manter os punhos cerrados, mas tirá-los dos bolsos!

Vitor Quarenta, membro do Diretório Nacional do PT de 2017 a 2025, integrante da CNB – SP, militante  do Núcleo Caravana e filiado ao PT de Franca/SP.

Encerrado o PED de 2025 e às portas do 17º Encontro Nacional, o PT precisa de direções saibam conciliar a reorganização partidária com a tática adequada para as eleições de 2026 e que consigam abrir um novo ciclo histórico de teoria e prática petista junto às lutas sociais deste tempo. Precisa de direções que deem vitalidade e força política ao projeto democrático-popular com dinamismo e renovação, revertendo o estágio em que nos encontramos hoje. E que construa uma ofensiva política que por mais hoje ainda pareça impossível aos nossos olhos, tão logo se torne inevitável. Para isso não podemos ficar apenas no teatro de combatividade, mas devemos partir para ações concatenadas que coloquem o partido em movimento rumo a um novo estágio de organização. 

I. “É preciso dar um jeito, meu amigo!”

Partindo um pouco mais de trás, o fato é que “resistência” talvez tenha sido a palavra que melhor simbolizou esses últimos dez anos da esquerda brasileira. Na verdade, em todo o mundo vivenciamos um período de defensiva da classe trabalhadora diante da proliferação de uma cepa populista e de extrema direita que prolongou a epidemia neoliberal hegemônica desde os anos 70 do século vinte. O neoliberalismo foi, inclusive, uma doença que reservou à América Latina passagens marcantes: no Chile, com um golpe de estado, debutou sua primeira experiência política; no Brasil viu nascer a sua mais poderosa oposição em todo o continente: a liderança de Lula e o surgimento do PT. A onda populista e extrema direita que renovou o receituário neoliberal também ganhou terreno com facilidade e antecedência em nosso país para, em seguida, irradiar para toda a América Latina: primeiro com a agenda judicial e policialesca dos integrantes da Lava Jato e depois com o surgimento de um movimento de extrema direita com caráter nacional e adesão de setores populares, o chamado bolsonarismo. Há diversas novidades nesta nova onda de extrema direita, mas o que salta aos olhos é a mesma submissão às forças do imperialismos americano e ao fundamentalismo da agenda neoliberal. A forma como se relaciona com o povo mudou; mas o objetivo desta relação subserviente, não. 

Como todos sabemos, uma extrema direita forte não é novidade deste século XXI. A atual extrema direita, no entanto,  tem características muito mais heterogêneas e internacionalmente conectadas do que as suas antecessoras. Impulsionada pelo dinamismo digital do capitalismo “de plataforma”, este campo fala hoje diversas línguas, ao ponto ser antissemita em alguns países e profundamente sionista em outros. Mas  converge naquilo que marca o espírito destes tempos:

  1. a busca por respostas populares ante a estagnação de quase todo o núcleo central da economia mundial após a crise de 2008 – a dos EUA e seus aliados.
  2. ao aprofundamento do apartheid etnico-racial em curso desde a expansão ultramarina da economia europeia no sec XVI, passando pelo imperialismo, neocolonialismo, até as guerras e ocupações deste século, de modo a naturalizar e defender o racismo, a desigualdade e a política anti-imigrantes em praticamente todo o tecido social.
  3. a aposta na conservação da matriz energética e produtiva a base de hidrocarboneto, de modo retardar a descarbonização da economia mundial
  4. a ausência de uma oposição consistente que se porte como um bloco histórico anticapitalista (ou pelo menos anti-neoliberal) e se apresente de forma viável, coerente e cativante às classes trabalhadoras de seus países
  5. a desidratação do componente dinâmico da democracia liberal, tornando cada vez mais rarefeita a soberania popular, os mecanismos de participação e a garantia de direitos sociais, o que faz com que a democracia se torne cada vez mais incolor, ineficaz e desconfortável para os que enfrentam a realidade como ela é.

As características deste quadra da história fazem com que a palavra RESISTÊNCIA tenha sido o principal guarda chuva que deu guarida à esquerda em todo o mundo nestes ultimos dez anos. Sempre me causou um certo incômodo esse espírito defensivo dos tempos em que estamos vivendo. Me incomoda, sobretudo, a forma como nossa militância se apegou a esta vocação para resistir, consolidando uma sensação acuada e guetificada do nosso espaço para a luta política contra a direita. É como se estivéssemos fadados a uma derrocada em que só nos restaria reduzir danos. Até os exemplos históricos da “resistência” nos levam a intuir isto: a resistência francesa não impediu a ocupação nazista, a resistência indígena não impediu a pilhagem colonial, a resistência socialista não impediu a restauração capitalista de quase todas as experiências revolucionárias. Qual o sentido de se referenciar no gabarito da derrota? Ou será que de fato se encerrou a janela histórica de uma transição do capitalismo a uma sociedade qualitativamente diferente? O certo é que o clima de calmaria no mar da história, sem ondas ou correntes quentes que pudessem levar a luta de classes adiante, parece conformar os navegantes de que o veleiro de nome Resistência não tem nenhuma vocação para ser Gramna, e só é capaz de ficar à deriva ou, como muita sorte, sobreviver às tempestades. 

É certo que as mulheres e os homens não fazem a história nas condições que gostariam como nos alerta a tradição marxista, e que após o ensaio geral de junho de 2013, as condições ficaram ainda mais adversas para o campo democrático popular brasileiro. A direita tomou as ruas e nós fomos prensados por ataques vindo de diversas frentes – solapando inclusive parte do nosso apoio junto a setores médios das classes trabalhadoras. Essa ofensiva, no entanto, não foi suficiente para nos derrotar nas eleições de 2014, o que fez com que o xadrez do campo da direita se modificasse até mais do que o nosso. A aposta na Lava Jato foi a saída possível para tirar o PT do poder e, ao mesmo tempo, superar a via eleitoreira da direita tradicional – tirando do caminho os caciques políticos hegemonizados pelo PSDB e abrindo espaço às facções jurídico-policialescas (representada por Moro, Dallagnol e seus seguidores) e populistas de extrema direita (como Bolsonaro, associado com os segmentos do fundamentalismo religioso, militares e da segurança pública).

II. A história de lá pra cá.

A história de lá pra cá todos conhecemos e vivenciamos à quente, mas é inegável que houve uma substituição do núcleo dirigente do campo de oposição ao petismo e com isso a forma de disputa também se alterou drasticamente. Um deslocamento que tem lastro internacional. O PT, por sua vez, ainda não se atualizou a esta nova realidade e insiste em tentar enfrentar o bolsonarismo com o mesmo modelo com que combateu os tucanos por mais de uma década. É certo que alguns ativos ainda têm força – como implementar através do governo um programa popular de conquistas sociais em favor do povo – mas é preciso passar em revista o partido que temos hoje para atualizá-lo aos desafios que se apresentam nesta ofensiva mundial da extrema direita.

Se não prepararmos o PT para esta conjuntura, a nossa gestão à frente do governo federal, de 2023 a 2026, corre o risco de servir mais como um freio de arrumação para uma nova hegemonia de direita – mais madura, capilarizada, moderada e popular do que Bolsonaro soube engendrar em 2018 – do que como uma retomada do ciclo ascendente do projeto democrático popular. Este jogo ainda está em aberto e acordar do berço esplêndido é inadiável para cumprirmos essa tarefa. Nosso governo, no ritmo e direção que percorre, tem total condição de chegar competitivo eleitoralmente em 2026, mas, ainda não tem força social para vencer essa correlação de forças na sociedade e muito menos atuar sobre as correlações entre as classes sociais que mantém esta hegemonia de forma tão discrepante. E daí o motivo dos desafios do PT serem ainda maiores nesta quadra da história. E desafios próprios ao partido, que só cabem a seus dirigentes e militantes.

A principal agenda precisa ser a de reorientar o nosso partido para uma dupla estratégia: um partido de ações “extra-parlamentares” e de planejamento “governo-independente”, com foco na renovação política interna de seus quadros e lideranças e na dinamização das forças democráticas e progressistas da sociedade, fortalecendo a esquerda como um todo, tendo o PT como seu principal instrumento, e dando organicidade à frente ampla contra a extrema direita. 

É verdade que este último ciclo foi marcado por uma postura combativa e de muita resistência por parte do PT – sobretudo identificada pela condução firme da presidenta Gleisi Hoffmann frente à luta contra o impeachment de Dilma, à perseguição e prisão de Lula e às campanhas de 2018 e 2022 contra Bolsonaro. Essa firmeza contribuiu em muito para que o PT tivesse credibilidade desde a luta pela libertação de Lula até a batalha pela sua sua eleição. Mas também é verdade que do ponto de vista organizativo o PT rumou em direção à moderação e a um parlamentarismo tacanho, em que a democracia e vida política partidária perderam intensidade e seguiram sendo capturados pelo poder crescente dos mandatos parlamentares. 

Devemos manter os punhos cerrados, na trincheira de quem souber resistir a este momento histórico. Mas chegou a hora de tirar as mãos dos bolsos que nos impendem de movimentá-las, e colocá-las em ação para transformar esta postura política em gestos concretos, construindo as circunstâncias de uma nova ofensiva política democrática e popular. Esta imagem, construída pela Rosa Luxemburgo há mais cem anos, remete à ideia de potência do movimento operário organizado, mas alerta para as amarras que o imobilismo institucional pode impor, mesmo quando disfarçado de bravatas combativas. O PT tem condições de ser um partido que não apenas denuncie a atual correlação de forças conservadora, mas que consiga revertê-la através da ação política planejada, diversificada e coletiva. O bravatismo de rede social e o cretinismo institucional que acometeu parte da esquerda são igualmente inócuos na disputa de poder contra a extrema direita.  

III. Antes que seja tarde demais

Até o PED, um mecanismo que surgiu para dar ampla participação aos nossos filiados, tem se tornado cada vez mais raro na vida interna partidária, ao passo que também não foi substituído por nenhuma outra experiência mais presente, participativa e à altura de nosso partido. Nossa democracia deveria ser muito mais diversa, formativa, militante e engajada do que apenas uma eleição nacional a cada quatro anos e, quando muito, alternada por encontros setoriais. Não podemos vestir a democracia petista com a baixa intensidade dos pleitos eleitorais, sendo que é possível combinar um partido militante, renovado e dinâmico com a ampla participação de massas que pudemos demonstrar neste PED 2025.

Obviamente que o PT não é uma ilha isolada, e a cangaia que o parlamento colocou sobre o presidencialismo teve efeitos estruturantes na dinâmica partidária dentro do PT. Já virou até mesmo um certo senso comum os discursos inflamados contra a dita “federação de mandatos”, ou em favor do fortalecimento das instâncias partidárias. Mas raramente saem do discurso, porque paulatinamente os mandatos aumentam seu poder interno paradoxalmente em que reduzem as suas capacidades de influenciar os debates públicos. Nossos parlamentares estão se tornando leões no controle da burocracia do PT e gatinhos na disputa política e ideológica da sociedade, com votações cada vez menores e mais custosas. A cada eleição demandam uma fatia maior do fundo eleitoral, colocam prepostos no controle das instâncias partidárias e ainda “igualam” alguns membros da burocracia a este piso orçamentário, contemplando até mesmo aqueles que não têm força eleitoral. É natural que um partido que só enxerga a via institucional, acabe por posicionar a vitória eleitoral como a única forma de “prosperar” na luta política, até mesmo para os dirigentes partidários. Com isso enfraquecemos a formação política, a participação dos petistas nos movimentos sociais, a comunicação e educação popular e até mesmo o acompanhamento dos nossos mandatos parlamentares. É preciso aprofundar esta reflexão sem nos apegarmos a saudosismo do passado e muito menos em ilusões do presente.

Não se trata de uma degeneração autóctone ou moral de nós petistas ou de nossas direções. Essa domesticação das lideranças institucionais, inclusive, é um processo também experimentado por vários outros partidos de origem classista. No caso do PT têm conexão direta com a dieta praticada no parlamento, onde a força política virou sinônimo de execução orçamentária e emendas parlamentares que cada deputado ou senador podem dispor durante o mandato. Infelizmente os nossos parlamentares não ficaram fora dessa febre. Chegamos ao cúmulo de ministros ou secretários de estado parlamentares quererem se exonerar dos cargos por dias apenas para que os suplentes não indicassem as emendas parlamentares que consideram “suas”. 

É preciso dar um jeito nisso e reorientar a estratégia do PT, antes que seja tarde demais. 

IV. Colocar o PT em Movimento

Colocar o PT em movimento significa, também, se dedicar radicalmente às causas que importam para a classe trabalhadora brasileira, dialogando com as formas mais difundidas da comunicação atual. A tensão entre popularizar um debate e não se perder no conteúdo sempre nos diferenciou enquanto um partido de massas que chama para si, muitas vezes, a missão contra-hegemônica de enfrentar o que a ideologia dominante prega e o senso comum da sociedade reproduz. A massa crítica que pode sintetizar a atual práxis petista certamente precisará incorporar a causa negra, feminista, ecológica, LGBTQI+, que tanto mobilizam as maiorias sociais brasileiras desde que o Brasil é Brasil. Estas agendas ocupam lugar de destaque nos setores mais organizados e conscientes da classe trabalhadora – sobretudo entre os jovens e estudantes – e tem ainda por fazer um acerto de contas com a história de nosso país. 

Não chegará a lugar algum quem tentar rotular ou restringir estas lutas emancipatórias com qualquer caixinha em separado. Ao mesmo tempo, é preciso tratá-las sem tabu ou misticismo, livrando-se de influências mercadológicas e neoliberais que disputam as agendas e seus públicos – com fazem com todas as demais. O partido que nasceu derrotando o peleguismo que se camuflava como uma erva daninha no meio sindical não pode ter receio ou preguiça de travar estes debates de forma fraterna junto às causas que mobilizam segmentos importantes da sociedade. E tratá-las como “identitárias” (como fazem alguns companheiros), reduzindo suas dimensões estratégicas e o papel transformador de seus sujeitos, soa da mesma forma que tratavam injustamente os grevistas do novo sindicalismo. Acusados de espontaneístas, despolitizados e excessivamente basistas, seja pela recusa à ingerência artificial das direções pelegas ou pelo advento de novas ferramentas de luta como os comitês de fábrica, estas acusações nunca mudaram o curso do rio da história. E por fim, sempre acabou derrotada esta mentalidade soberba e que é típica daqueles que comentam a luta de classes à distância.

A próxima direção nacional do PT, encabeçada por um quadro político experiente, criativo e ousado como o Edinho Silva, tem todas as condições de estar à altura destes desafios. E apesar da preocupante fragilização das tendências minoritárias – que resulta de uma degradação mais profunda de nossa vida partidária – ao ponto de que a segunda chapa mais votada tenha obtido apenas 20% dos votos da chapa da CNB, esta gestão precisará avocar para si nada menos que a reconstrução do PT enquanto um partido militante, combativo, nacionalizado, viável enquanto projeto de poder local, dinâmico e inquieto com qualquer acomodação institucional de nosso sentido histórico.  Um partido que seja cativante para as novas gerações ao mesmo tempo que cuidadoso com as velhas tradições. Que acolha o nosso futuro, que valorize o nosso passado e que reencontre traços imprescindíveis de nossa trajetória e que, por ventura, tenhamos perdido no percurso até aqui. Sem receio de avançar e nenhum orgulho que não nos permita recuar aonde erramos.  

Tudo isso só pode acontecer a partir da tomada de decisão política. E é preciso tomar lado em face desta reorientação, seja na maior ou na menor divergência que se apresente ao nossos dirigentes e militantes. E da mesma forma que planejar é o caminho mais seguro para viabilizar as condições concretas em face da incerteza que futuro trás, decidir onde deve se dar esta tomada de decisão em um partido como o PT é a principal questão.

V. A estratégia das multidões 

O militarismo pueril que invadiu a teoria política a partir das revoluções modernas deixou uma parte da esquerda ainda presa a uma jaula teórica de ferro acerca do direcionamento tático e estratégico. Vulgarmente acredita-se que a tática é o manuseio momentâneo e imediato no campo de batalha, estando a disposição, portanto, a qualquer soldado raso comprometido e dedicado com a vitória.  A tática seria uma ferramenta disponível aos comuns, integrantes do baixo clero do partido. A estratégia, em oposição, seria o olhar dos grandes generais, que visualizam o todo da guerra, com todos os fronts em conflito e a dimensão de perdas e ganhos,  suprimentos e logísticas para sobreviver ao combate. Caberia, portanto, a poucos dirigentes  – capazes e experientes – saber prospectar e dirigir tão complexa alquimia. É uma imagem forte e popular dentro da esquerda, mas não passa de uma projeção mistificada, que nunca foi a realidade de nenhum movimento revolucionário bem sucedido. Não foi assim na República dos Soviets e certamente não será no lado debaixo da linha do Equador. 

Um partido como o PT precisa inverter este funil constantemente: a estratégia deve ser a formulação elaborada com a digital da multidão de militantes que nos cercam, ao passo que a tática pode – se bem alinhada e permanentemente revisada – ser a tomada de decisão feita pelas nossas direções, compostas pelos melhores quadros de nosso partido. É o que o ensina o instinto de um partido de massas que procura caminhar até onde o povo pode ir junto, mas que a todo momento deve estimular condições para que as massas assumam o papel dirigente na luta social, produzindo novos quadros, travando novas lutas e dando saltos adiante na história. A próxima direção do PT precisa pavimentar caminhos pelos quais a multidão de trabalhadoras e trabalhadores poderão se conectar com a formulação estratégica e manter a observância sobre as tomadas de decisões táticas.

Nossa militância tem expectativa que o delegados a este 17º Encontro Nacional comecem a desdobrar estas tarefas para que nossas direções zonais, municipais, estaduais e nacional, em conjunto com os militantes, iniciem um novo ciclo organizativo no PT.

Que as novas direções do PT mantenham a disposição de resistência que as anteriores tiveram, mas que saibam colocar a combatividade em movimento, saltando para além das barricadas recuadas em que estamos entrincheirados atualmente. Nós precisamos avançar sobre o terreno de nossos inimigos. 

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