A unificação das federações de PT e PSOL: uma proposta para o debate.

Vitor Quarenta, membro do diretorio nacional do PT entre 2017 e 2025, militante do Núcleo Caravana do PT

Todos nós já sabemos que o presidente Lula viverá até os seus cento e vinte anos de idade, como ele tem nos avisado faz pelo menos uma década. Essa certeza tem como base seu “tesão de vinte”, mas também a predição dos cientistas de que o homem ou a mulher que voltará a viver até a idade que viveu Moisés no Antigo Testamento já está vivo e andando entre nós no anonimato. Mas como não é do seu estilo guardar segredos, Lula resolveu nos avisar de que ele é justamente o escolhido da vez. Mais uma vez. Cá entre nós, não será a façanha mais surpreendente de sua vida, já que estatisticamente é mais fácil um sertanejo, nordestino, pobre e operário viver cento e vinte anos, apesar das dificuldades, do que passar doze anos como Presidente da República. Mas Lula, abençoado por Deus e pelo povo, acabará quebrando mais estes dois recordes. 

Diante disso, nos restam quarenta anos de exercício político desta liderança que hoje coesiona em torno de si as forças de esquerda e democráticas de nosso país. Nosso desafio agora é saber como aproveitar da melhor forma possível o auge da maturidade deste que tem sido o maior fenômeno popular da história política brasileira. Para alguns pode ser o fim de um ciclo, para outros é apenas o início de novas libertações. Depois de viver quarenta anos no Egito e outros quarenta anos pastoreando em Midiã, foi aos oitenta anos de idade que Moisés, liderando seu povo de forma organizada e decidida, iniciou o êxodo que libertou-os da escravidão e do deserto.

Mas aqui neste testamento há naturalmente mais divergências entre nós. Esta geração que teve o privilégio de compartilhar as fileiras de seu tempo ao lado de Lula têm visões distintas sobre o espírito e as obras dos dias que se anunciam com a chegada de seus oitenta anos de idade e também do último ano de seu terceiro mandato. Vamos às ideias deste debate.

Temos primeiro um grupo formado por aqueles que confiam exclusivamente na condução de Lula, que de forma hábil e sempre conectado com os interesses do povo, soube até agora equilibrar grande parte das lideranças, egos e partidos brasileiros. Lula montou o time que hoje governa o Brasil em torno de um programa de reconstrução social e defesa da democracia, projetando a retomada de um projeto de desenvolvimento econômico social com redução de desigualdades, soberania e transição ecológica. Quem acha isso “pouco” não conhece a história do Brasil e muito menos o perfil dos setores políticos e empresariais que compõem a nossa classe dominante. 

Em face de uma avaliação “realista” desta quadra da história é que grande parte dos atores e comentaristas políticos acreditam que APENAS LULA pode manter unida e viável esta frente que governa o Brasil atualmente. Sem Lula no jogo a partida ficaria indefinida ao ponto de não conseguirmos sequer prever a escalação de nosso time. Esta corrente de ideias joga para o futuro a parte “obreira” deste enlace, com cada segmento correndo pelos seus próprios interesses até lá. Os defensores desta visão poderiam ser chamados de Conjunturalistas. O mérito desta visão, além de se basear em uma leitura correta do papel decisivo de Luiz Inácio na História, é não abrir disputas e antecipar movimentos futuros. Confiar na força do espírito do Lulismo e não fazer hoje o que podemos deixar para fazer amanhã. É também este o roteiro mais conciliador com os nossos adversários, inebriados pela ilusão de que a força de Lula persistirá APENAS durante os cento e vinte anos em que ele viver. 

Mas essa não é a única forma de enxergar os próximos quarenta anos, e muito menos o único jeito de se portar nos próximos cinco anos de governo, com a reeleição de Lula e o hexacampeonato do campo democrático popular na ordem do dia.    

E é aqui que entramos em cena todos nós que queremos fazer entrar pela última janela entreaberta deste casarão do século XX toda a tralha e mudança que trouxemos para mobiliar o prédio novinho que estamos construindo nos fundos do terreno. O edifício, com a cara do século XXI, está sendo levantado para abrigar as novas lutas que batem à porta e também as que estão por vir. 

E para isso temos duas fundações estruturais que podem melhorar a engenharia de nossa obra. A primeira já está em construção: manter a unidade política da esquerda e da centro-esquerda em torno desta agenda política liderada por Lula, com sua dimensão eleitoral (nas disputas estaduais e nacional) mas sobretudo política. Do PSB e PDT ao PT, PSOL e PCdoB, é importante constituir uma mesa de diálogo para os próximos meses em que se priorize a luta pela redução da jornada de trabalho com o fim da escala da 6×1, que deve ser o nosso principal eixo de luta até as eleições. Só com este campo unido se pode construir um calendário que acumule forças, mobilize a sociedade e ocupe a pauta política de 2026, combinando a agenda institucional (inclusive já prenunciada por Lula na cerimônia de sanção da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais) com um calendário de lutas de massa, que combine as manifestações durante o carnaval com a convocação de um dia nacional de mobilização em seguida, nos moldes de uma greve geral (e social!) pelo fim da jornada 6×1 em todo Brasil.  Ou seja, a primeira obra é manter o que está dando certo: as forças progressistas unidas e em movimento, ainda que lento. E é papel principalmente do PT sair na frente para colocar de pé iniciativas como esta da Greve Geral pelo fim da jornada 6×1. Se é verdade que a esquerda sozinha não tem força para ganhar e governar o Brasil, também podemos dizer com certeza que sem ela unificada nossa realidade fica ainda mais complexa e difícil.

A segunda fundação desta obra seria em busca de um salto organizativo em nosso campo para os próximos quatro anos e que, se bem executado, poderia influenciar com mais peso a correlação de forças do próximo período. Nesta fundação tem três pilares principais, a unificação das federações PT-PV-PCdoB e PSOL-Rede em uma só federação; a constituição de uma federação de centro esquerda em torno do PSB e de outra federação em torno do PDT. Estes três pilares organizados pelas forças progressistas dariam consistência  e sustentação institucional para se contrapor ao garroteamento que os setores neoliberais e de extrema direita fazem no mundo político. Construídas as fundações, teremos um piso nivelado, sólido e bem distribuído nacionalmente para levantarmos mais uma vez uma frente mais ampla e democrática à vitória. 

Destes três pilares o mais decisivo é o da unificação do das federações do PT e do PSOL em uma só federação. Os dois maiores partidos de esquerda da Câmara federal poderão constituir, a partir da unificação de suas federações, um novo tempo para a organização da esquerda no Brasil. A federação tem sido um mecanismo mediador do importante processo de redução da fragmentação partidária. Os partidos que não atingem a cláusula de desempenho podem continuar existindo dentro das federações desde que no interior de um bloco maior, com obrigações e restrições políticas mais incisivas. Foi o que aconteceu com o centenário PCdoB e o significativo PV. Vale dizer, inclusive que foram os camaradas do PCdoB que trouxeram este advento da federação partidária que permite a reorganização de legendas que encontram dificuldades no jogo desigual das eleições, ainda que cumpram papel destacado em outras áreas da luta social.

É verdade que há, ainda, um grande erro na regra eleitoral das federações que prejudica sobretudo a esquerda ou a convergências não monetizadas. A restrição da mesma quantidade de vagas de uma nominata de candidatos mesmo quando a federação agrupa mais de dois partidos faz com que a esquerda perda representação relativa nos quadros de candidatos. Isso faz com os partidos que poderiam estar federados fiquem desestimulados, ainda preferindo a participação varejista na sopa de letrinhas partidárias. Neste sentido, o campo político que participa deste processo de federação acaba por dispor ao processo eleitoral uma menor quantidade de vagas de candidatos do que o campo que se fragmenta em vários partidos sem lastro ideológico. É uma circunstância que beneficia apenas a lógica fisiológica. Em face disto seria importante que se criasse uma regra intermediária que altere a quantidade de vagas em nominatas de federações com mais partidos. Uma federação de cinco partidos de esquerda não pode ter ⅕ da quantidade de candidatos que 5 partidos sem identificação ideológica que, muitas vezes, sequer atingem nacionalmente a cláusula de desempenho mas podem, turbinados por máquinas locais, montar legendas de aluguel. 

Independente desta mudança prosperar ou não, o Partido dos Trabalhadores deveria convidar oficialmente o PSOL para integrar consigo uma mesma federação, agregando ao PCdoB, PV e Rede. Com base primeiro na grande política, acima dos estímulos e conveniências. Ambos os partidos representam, com características e distribuição geográfica distintas, o mesmo campo político de esquerda mantendo uma história em comum e um alinhamento enorme desde o golpe de 2016, há quase dez anos. As diferenças que existem dizem respeito à pluralidade de pensamento e aos valores democráticos que constituem a melhor tradição da esquerda brasileira e que podem, com fraternidade, conviver dentro de uma mesma federação. Não há resquícios de uma disputa fratricida e nociva entre as organizações. A esquerda brasileira amadureceu deixando o sectarismo de lado e é preciso apostar ainda mais nesta via de construção conjunta. 

Do ponto de vista institucional a federação liderada pela junção das de PT e PSOL reforçaria os esforços que a esquerda tem feito em  voltar a ganhar terreno nas capitais, cidades mais populosas e nas regiões sul e sudeste (o que beneficiaria particularmente o PT, já que apesar de ter presença organizada, continua muito enfraquecido e isolado sobretudo nos interiores); unificaria os esforços para resistir às ofensivas da extrema direita na região Norte e Centro-Oeste; e daria mais pluralidade partidária à esquerda na região nordeste (o que beneficiaria particularmente o PSOL que tem sua construção na região dificultada por não conseguir nominatas competitivas apesar de ter lideranças importantes). Para quem pensa com a lado “eleitoral” do cérebro, esta federação unificada não salva a lavoura mas corrige imperfeições, sendo muito mais positiva do que negativa para ambos, sobretudo na eleição de 2026.

Na prática, estes partidos que já trazem consigo o ônus de pertencer ao mesmo lado da polarização atual teriam a partir de uma federação ao menos o bônus de, combinado, se complementar no fortalecimento de suas organizações em nível nacional. A unidade é a melhor arma contra o desenvolvimento desigual e desorganizado da esquerda. Os partidos se complementariam também em perfis de liderança e origem política de maior parte de seus quadros, sendo estimulados a também convergir em outras trincheiras da luta política. Este intercâmbio faria bem ao fortalecimento de ambos os partidos como fez para PCdoB no último período. 

Interessa isso ao PT? Certamente. Um partido que dirige o Brasil, já governou inúmeros estados e milhares de municípios, não pode se restringir apenas à sua auto-construção. A esquerda (e a centro esquerda) precisam encontrar caminhos para construir projetos viáveis de envergadura e presença nacional nos moldes do PT, saindo de uma certa biruta local ou regional que ainda hoje orienta alguns destes partidos com base na mentalidade provinciana. Afinal, como diz o ditado, a cabeça pensa onde o pé pisa: partidos que vivem apenas da política local, contribuem e formulam soluções, quando muito, apenas para o nível regional. Interessa ao PT contribuir com a solução destas fragilidades que acometem nossos aliados uma vez que também vivemos uma trajetória própria de desnacionalização de nossa presença institucional, como já dissemos em outras oportunidades. Mais do que isso… a desfragmentação do sistema político em curso caminha para que tenhamos em menos de três eleições apenas cinco ou seis grandes federações/partidos competitivos e, a preço de hoje, apenas o PT representará o espectro de esquerda e da centro esquerda neste rol. Este quadro exerce uma pressão muito grande para movimentar a política brasileira à direita. Quem não rema na corredeira vê o barco virar. 

Mas não se trata apenas do ponto de vista tático e geográfico, que desemboca diretamente nas próximas eleições. Mas temos, de fundo, uma questão estratégica a respeito de quais instâncias de coordenação terá a esquerda no próximo período, nos quarenta anos mais virtuosos do êxodo lulista. É preciso constituir instituições novas da organização popular que reúna as melhores capacidades de se criar e organizar o contrapoder dos trabalhadores, amadurecendo lideranças e novos processos coletivos de participação e direção política. Tudo indica que o PT poderá ter ainda mais protagonismo, mas de um novo tipo. A crise mais geral dos movimentos sociais e sindicais do nosso campo cujas direções titubearam para encampar a luta contra o fim da 6×1, só aderindo quando a maior parte da classe já estava convencida, mostra que os partidos têm responsabilidade ainda maior neste momento político.

Poucas vezes na história a esquerda brasileira esteve unida por tanto tempo quanto nestes últimos dez anos, o que poderia apontar para não haver necessidade de uma nova engenharia. Diz a lembrança que a esquerda só se une quando está sendo perseguida, até porque sob perseguição nossas diferenças não significam nada para nossos inimigos: somos tratados como iguais quando estamos na condição de alvo. No entanto, neste último período mostramos que conseguimos cultivar a unidade entre nós quando andamos para frente também, e não apenas na defensiva. Esta é uma grata novidade. 

Não se trata, também, de construir unidade apenas para preservar aquilo que já eregimos em comum.  É possível estar junto para reunir as energias criativas de uma nova ofensiva política de esquerda que traga consigo um fôlego de longa duração. O que temos de bom, em separado, nos permitiu lutar para preservar as conquistas que tivemos até aqui. Mas é necessário aproveitarmos esta última janela histórica do ciclo que se iniciou ao fim dos anos setenta do século passado, e isto só se viabilizará com a pavimentação de mais um pavimento conjunto de nossas esquerdas. A federação entre PT e PSOL – com todas as suas contradições – pode ser a ferramenta certa para isso. 

Obviamente a burocracia não resolve lacunas políticas e isso pode ser visto no baixo aproveitamento que o PV e a Rede fizeram das federações até aqui. Não é verdade, no entanto, que as suas presenças nas federações inviabilizaram numericamente o crescimento dos demais partidos (pelo contrário, o PT cresceu  praticamente a mesma quantidade de vereadores que o PV diminuiu, por exemplo) e muito menos que essas duas agremiações manteriam o tamanho que tinham antes de se federar caso não tivessem tomado esta decisão. Na prática a burocracia não se sobrepõe à política, mas visto que uma política caminha para uma determinada direção, pode-se ganhar ainda mais consistência e lastro institucional se estiver casada também com um movimento organizacional correspondente. A federação busca dar solução a isto. 

Está na hora da unidade construída entre o PT e o PSOL nas ruas, nas lutas e agora no governo federal ganhar um contorno superior de unidade entre esses partidos, respeitando a construção e o papel histórico de cada um e estimulando inclusive o amadurecimento próprio de cada partido. Não devemos tolher os segmentos dentro destes partidos que são mais refratários a esta aproximação, particularmente o sectarismo centrista dentro do PT e ao sectarismo esquerdista dentro do PSOL. Não há mal algum em que sejam ouvidos, dialogados e priorizados nesta construção, até para que esta eventual federação não seja um ato “de cima” e sim “desde baixo”, trazendo as características reais dos partidos plurais que são.

 É possível construir um calendário político para este debate se dê com acúmulos coletivos. No PT este calendário deve passar pela avaliação de como foi a   Federação Brasil da Esperança, das relações que nossa militância nutre com PCdoB, PV, PSOL e Rede e na aposta em um calendário de lutas conjuntas que envolva os movimentos sociais e estes partidos aliados. Devemos priorizar derrotar a jornada 6×1 a partir das ruas, para pressionar a pauta do parlamento e trazer o tema das eleições de 2026 até nós. 

A resposta do povo a este movimento, que já nos enxerga como sendo da mesma margem do rio, mostrará, mais cedo ou mais tarde, que não tem motivo para PT, PSOL, PCdoB, Rede e PV não estarem em uma mesma federação partidária. O compartilhamento deste futuro em aberto passa por responder de forma humilde à mesma provocação que foi feita ao octagenário Moisés no deserto um pouco antes de ele dividir as responsabilidades  de liderança com seu povo: “você e o seu povo ficarão completamente esgotados, pois esta tarefa é pesada demais. Você não pode executá-la sozinho.” (Êxodo 18:18-20) 

Sabendo aonde queremos chegar e cruzando um deserto que começa com quatro anos mas que aponta para os próximos quarenta, devemos nos lembrar que para ir longe – diferente de chegar rápido – andar em grupos maiores é sempre a melhor solução. Neste sentido é que o PT deve procurar PSB e PDT para dialogar a melhor forma de contribuirmos com o fortalecimento partidário deles para 2026, e, sobretudo, convidar o PSOL para construir juntos a federação partidária que unifique toda a esquerda. Nada disto impede movimentos naturais de fortalecimento do próprio partido, mas preparam o PT e seus dirigentes para um tipo de condução mais heterogênea e plural da esquerda brasileira, a imagem do que sempre fez Lula. 

Preparar um ciclo qualitativamente melhor de nosso campo é o que nos impedirá de estarmos pregando sozinhos no deserto daqui a quarenta anos.

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